União Estável Paralela – Admissibilidade no ordenamento jurídico brasileiro

Valéria Giacomini Ribas
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Ao questionar a admissibilidade de existência de uniões estáveis paralelas é necessário considerar os pressupostos da própria união estável e os eventuais impedimentos de sua constituição, bem como conceitos os conceitos de fidelidade, relações paralelas e concubinato, e, com especial atenção, os reflexos sobre eventuais descendentes.

Seguem breves considerações sobre o tema.

O Código Civil brasileiro regulamenta, a partir do caput do artigo 1.723, que reconhece como entidade familiar a união entre o casal configurada na convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir de família.

Assim, presentes, os pressupostos necessários para o reconhecimento judicial da união estável, alcança esta a condição de entidade familiar, pelo § 3º, do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que também lhe garante estatal.

Retrocedendo no contexto histórico, observa-se que a união estável é na realidade o método mais antigo de constituição familiar, existindo de forma natural.

Somente com o surgimento das religiões organizadas, e posteriormente intervenção do Estado é que instituiu-se o casamento, que criou regras fixas para a constituição de entidades familiares. Assim, se presentes os requisitos originais, atualmente se reconhece as entidades familiares ainda que não presente a intervenção do Estado.

Dessa forma, pode o casal tomar diversas formas, podendo ou não coabitarem, sendo solteiros ou mesmo casados, desde que separados de fato ou judicialmente, divorciados ou viúvos.

É imprescindível, todavia, que se apresentem à sociedade como casal, unidos pela inequívoca intenção de constituírem família, com ou sem filhos.

A entidade familiar define-se pela relação estável – formal ou não – entre o homem e a mulher, e mais recentemente até mesmo por duas pessoas do mesmo sexo, e assim é reconhecida ainda comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, conforme os §§ 3º e 4º do artigo 226 da Constituição Federal, in verbis:

Art. 226
A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (Regulamento)
§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Um requisito determinante dessa convivência é a sua publicidade, não podendo ser reconhecida união estável na relação oculta, dissimulada, clandestina, o que é próprio das relações ilícitas.

Registra Rodrigo da Cunha Pereira, ser tendência pretoriana a dispensa da convivência sob o mesmo teto, “exigindo-se, porém, relações regulares, seguidas, habituais e conhecidas, se não por todo mundo, ao menos por um pequeno círculo.”

Família, para João Baptista Villela, “não é apenas o conjunto de pessoas onde uma dualidade de cônjuges ou de pais esteja configurada, senão também qualquer expressão grupal articulada por uma relação de descendência.”

Conforme o § 1º, do artigo 1.723 do Código Civil, a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do artigo 1.521, não se aplicando a incidência do inciso IV no caso de a pessoa casada se achar separada de fato.

Considerando a clara posição da legislação com relação ao regime monogâmico das relações conjugais, o artigo 1.521, inciso VI, do Código Civil impede o matrimônio entre pessoas que já sejam civilmente casadas, a não ser que já esteja extinto o vínculo conjugal, pela morte, pelo divórcio ou pela invalidade judicial do matrimônio existente.

Embora a pessoa casada não possa casar novamente enquanto não dissolvido o seu casamento pelo divórcio, declaração judicial de invalidade, ou morte, igual restrição não acontece na conformação de uma nova relação através da união estável, dado à expressa ressalva do parágrafo primeiro, do artigo 1.723 do CC, de que a separação judicial ou mesmo a simples separação de fato, são suficientes para conferir inteira validade ao casamento informal, não exigindo a dissolução formal do matrimônio civil pelo divórcio.

Mas segue sendo empecilho para a união estável a coexistência de casamento paralelo, cujo cônjuge não está separado, nem judicialmente e nem de fato, e mantendo uma relação adulterina vedada pelo § 1º, do artigo 1.723 do CC, conforme o disposto no atrigo 1521 do mesmo Código. Vale a transcrição de ambos os artigos.

Art. 1.723
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
 
Art. 1.521
Não podem casar:
I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II – os afins em linha reta;
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V – o adotado com o filho do adotante;
VI – as pessoas casadas;
VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

Assim, ao equiparar a união estável ao casamento em todas as suas prerrogativas, da mesma forma estará ela sujeita aos impedimentos impostos ao casamento, e consequentemente, imputa-se como concubinato a violação da monogamia também na constância da união estável, configurando concubinato a relação paralela mantida na vigência da união estável.

Marco Aurelio S. Viana, reprovando o que classifica como concubinato múltiplo, tal conduta é incompatível com a estabilidade e a permanência, exigidas na união estável:

“(…) o contingente moral que a união estável exige, pois o que se tem é uma aparência de casamento, os deveres que dela promanam, a sua relevância como forma de constituir uma família, todos esses fatores autorizam dizer que o concubinato múltiplo jamais poderá gerar efeitos, não merecendo a tutela da legislação especial.”

Álvaro Villaça Azevedo é enfático quanto ao posicionamento predominante da jurisprudência dos tribunais brasileiros ao inadmitir efeitos jurídicos ao adultério, como confirma o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na Apelação Cível nº 2001.001.06912, da 5ª Câmara Cível, julgado em 03 de agosto de 2001, sendo relator o Des. Humberto de Mendonça Manes, com a seguinte ementa:

“Direito Civil. Ação declaratória de união estável com meação de bens, em virtude da convivência da autora, mulher divorciada, com homem casado que até à morte não se separara, mesmos de fato da esposa. Prova, outrossim, de que os bens foram adquiridos antes da relação adulterina ou pela transformação de bens anteriores. Pressuposto de fato, não preenchido, da Lei nº 9.278/96, o que conduz à improcedência do pedido, mantendo-se, em apelação, a sentença que assim decidiu.”

Contudo, tem sido cada vez mais frequentes as decisões judiciais reconhecendo direitos às uniões paralelas ao casamento, ou a outra união afetiva. Zeno Veloso, ainda que rejeite o concubinato múltiplo, como já mencionado, afirmando não caracterizar este uma união estável, ressalvada a união estável do convivente de boa-fé. Em seus comentários ao Código civil, assim manifesta-se:

“(…) entendo que, naquele caso, referido, deve ser reconhecida ao convivente de boa-fé, que ignorava a infidelidade ou a deslealdade do outro, uma união estável putativa, com os respectivos efeitos para este parceiro inocente”.

Concluindo, a união estável é reflexo do casamento, não importando a formalidade do vínculo mas sim a pré-existência de um vínculo estável o pressuposto da existência de uma entidade familiar, com características, direitos e deveres inerentes a ela, sendo uma dessas características, ou mesmo um de seus deveres, a monogamia. É clara a disposição do ordenamento jurídico, assim como a jurisprudência dominante, de que casamentos múltiplos são vedados, e assim por reflexo as uniões estáveis múltiplas, ressalvadas as putativas. Portanto, pode-se aferir que o nosso sistema jurídico, em regra, não admite a existência de uniões estáveis paralelas.  


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto de família de fato, Jurídica Brasileira: São Paulo, 2001. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo, uma espécie de família, RT: São Paulo, 1998. MADALENO, Rolf. A infidelidade e o mito causal da separação. Revista Brasileira de Direito de Família, Síntese-IBDFAM: Porto Alegre, out-dez.2001, p.152, ainda em Repensando o Direito de Família, Livraria Editora do Advogado,: Porto Alegre, 2004. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável, Del Rey,: Belo Horizonte, 6ª e. 2001. VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. Vol. XVII. Coord. Álvaro Villaça Azevedo. VIANA. Marco Aurélio S. . Da união estável, Saraiva: São Paulo, 1999. VILLELA, João Baptista. As novas relações de família, citado por PEREIRA, Rodrigo da Cunha, In Direito de Família, uma abordagem psicanalítica, 2ª e., Del Rey: Belo Horizonte, 1999.